sexta-feira, 24 de julho de 2015

O oceano no fim do caminho - Neil Gaiman

Em busca de um tempo nada perdido

Por conta de resenhas e críticas que havia lido há tempos, comecei a ler o novo livro de Neil Gaiman, O oceano no fim do caminho, esperando algo mais calcado na realidade (não sei onde estava com a cabeça) e autobiográfico. Enfim, um livro que fugisse um pouco dos padrões de literatura fantástica do autor. Enganei-me fantasticamente. Gaiman não só está no seu universo, mas confortável e apaixonadamente entregue ao que ele faz de melhor. 

Recentemente, meu romance com os produtos da mente desse britânico andava um tanto quanto fatigado porque resolvi acompanhar o cara nas redes sociais e descobri que o ser humano Gaiman é muito menos interessante (e consideravelmente mais babaca) do que a sua obra. Além disso, Coisas Frágeis, o último livro que tinha lido dele é, quando muito, curioso e, na maior parte do tempo, apenas mais do mesmo. 

O oceano no fim do caminho, no entanto, reacendeu a fagulha desse amor literário. O livro é inegavelmente um produto da marca Gaiman, porém um exemplar do que ele consegue produzir de mais refinado. Uma história em que se consegue ouvir sua voz claramente e perceber a paixão que foi colocada naquelas linhas. Além de ser um trabalho de edição fenomenal, pois a trama foi visivelmente burilada até deixar somente o essencial para contar a história e cativar o leitor a maior parte do tempo.

Acompanhamos as peripécias de um garoto de sete anos sendo narradas por um homem de meia idade que, pelo contexto, parece ser um alter-ego de Gaiman relembrando a infância. O suicídio de um personagem dá início à trama principal, aparentemente libertando um mal desconhecido. Desconhecido para o protagonista, mas não para as místicas e poderosas mulheres do clã Hempstock, que já sabem de sua existência desde tempos imemoriais. De forma peculiar, o protagonista acaba servindo mais como uma âncora para o expectador maravilhar-se com essas intrigantes personagens femininas, a quem pertence efetivamente o foco da narrativa.

A linha entre a imaginação e o factual é muito tênue e é ultrapassada o tempo todo. Em um dos momentos mais tensos do livro, você tem certeza de que a ação é "real", mas a motivação pode vir tanto de algo fantasioso, como de algo muito mais bruto e cruel. Como em As aventuras de Pi, talvez a fantasia seja algo muito mais palatável do que a realidade, ou talvez a fantasia seja a realidade se assim lhe parece. Depende também de nós leitores e daquilo em que escolhemos acreditar, sendo que o enredo faz uso constante não só dessa ambiguidade, mas de muita simbologia.

Os símbolos parecem ao mesmo tempo serem óbvios e impossíveis de serem captados: seriam as Hempstock uma alusão a Santíssima Trindade? O oceano é uma imagem para o berço da vida ou simplesmente uma metáfora para o conhecimento e para o amadurecimento? A linguagem ancestral seria a palavra de Deus ou simplesmente uma alegoria para reforçar o poder do mito e das histórias? Em alguns momentos, as referências deixam de ser metáforas para quase simples e cruas comparações, e ainda assim é muito difícil agarrá-las com firmeza e certificar-se de seus significados.

Mantendo um de seus principais tiques narrativos, os personagens de Gaiman estão sempre envolvidos nas situações mais irreais possíveis e ainda assim eles se mantém reais. Você vê que eles não estão sendo levados pela história, mas que realmente a estão vivendo. Mesmo a naturalidade com que o protagonista de Oceano enfrenta determinadas situações fantásticas, parece mais verdadeira do que uma reação "apropriada" permitiria. É muito bem estabelecido que estamos falando não só de uma criança de sete anos, mas de uma com uma imaginação muito fértil, irrigada por leitura ininterrupta e por uma absoluta paixão por mitos e lendas.

O oceano no fim do caminho é um livro curto e rápido de ler, mas que remexe no nosso baú da infância e nos faz lembrar que a criança que fomos vai estar sempre dentro de nós e que aquilo que nos dava força há anos, estará sempre lá para nos mover mesmo em nossos momentos mais difíceis e desafiadores.  O livro não puxa você para o mundo dele, mas sim te empurra para dentro de si mesmo. Mais próximo do final, a vontade de chorar era quase irrepreensível e tenho consciência de as lágrimas vieram não pelos eventos que se desenrolavam no mundo de O oceano, mas pelas memórias e experiências que elas evocavam em mim mesmo.

Contudo, nem tudo funciona no livro e uma análise fria e técnica o colocaria na categoria "ótimo", para alguns leitores apenas "bom", e não "excelente/obra-prima" como escolhi classifica-lo. Ele, no entanto, conseguiu, especificamente comigo, transcender a relação de entretenimento puro e simples, para algo muito mais íntimo e seria uma injustiça avaliá-lo apenas pelos critérios técnicos. Aqueles leitores que se permitem enxergar o mundo não só com os olhos, mas também com a imaginação, provavelmente concordarão comigo.  

E você pode até esperar o filme (que segundo o IMDB já está em desenvolvimento e provavelmente será uma coleção de cenas oníricas fantásticas), mas para alimentar a criança que se escondeu dentro de você, bata a poeira que assentou-se sobre sua fantasia e deixe ela correr livre por alguma horas com as Hempstock. Você em algum momento vai se lembrar que já mergulhou no oceano no fim do caminho e que ele continua lá esperando sempre que dele precisar.

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