terça-feira, 24 de março de 2015

Garota Exemplar (Livro)

A faceta mais aterrorizante do casamento

Considero quase impossível fazer uma análise desse livro sem revelar detalhes da trama. Por esse motivo, segue no primeiro parágrafo, o arremate que estaria reservado ao último: um ótimo livro de suspense que vai fundo em analisar os perigos que rondam um casamento e a difícil dinâmica entre um homem e uma mulher. É diversão garantida com um bom tanto de reflexão e recomendo sem maiores ressalvas.

Vamos agora à análise que pode conter spoilers.

Só para começar: ainda que a tradução do título para o português seja bastante própria para o livro, ela altera consideravelmente a relação do leitor com o mesmo. No original, em inglês, Gone Girl, você pode entender "Garota que se foi" em seu sentido mais literal e que é totalmente apropriado para uma história cujo tema principal é o desaparecimento de uma mulher, mas você pode também aceitar o seu sentido metafórico como a garota já não está mais lá ou já se tornou outra pessoa. Nos dois casos estaríamos falando de uma garota genérica, como se representasse toda e qualquer mulher.

Garota Exemplar, o título em português, remete a uma temática muito específica, de uma garota que não comete erros, que faz tudo o que se espera dela. Algo extremamente em linha com um dos pontos mais relevantes do livro, mas que não representa o que me parece ser a intenção original da autora. Cito esse assunto apenas como uma ponderação, porque admito que seria difícil uma tradução que capturasse a essência do título original.

Garota Exemplar é um exemplo do que os americanos sabem fazer de melhor: replicar modelos de sucesso. Parece um livro escrito com uma fórmula ou roteiro com regras e métricas sobre o que inserir ou revelar em cada momento. Ele apresenta os personagens e inicia a ação rapidamente e vai distribuindo pequenos ganchos a cada, no máximo, 15 ou 20 páginas, fazendo com que o interesse se perpetue (estilo Dan Brown). Só que mesmo que a técnica seja perfeita, seria muito difícil alcançar o sucesso sem um tema que falasse diretamente à alma do leitor: no caso de Garota Exemplar, a incomunicabilidade entre o homem e a mulher e a difícil missão a que eles se propõe de manter um casamento. 

Boas histórias de terror e suspense são aquelas que intensificam o lado perverso de algo que culturalmente consideramos positivo. Quando você transforma a gestação e o nascimento de uma criança em algo perverso, por exemplo, você atinge mais profundamente sua audiência. Em Garota Exemplar, o protagonista monstruoso é a relação de Amy e Nick e principalmente o seu casamento. Pequenas frustrações ou dificuldades de comunicação que permeiam o casamento de qualquer pessoa são amplificadas até atingirem níveis surreais. Contudo, como são calcadas na realidade, sempre fica a sensação de que "poderia acontecer comigo".

Amy e Nick, os polos dessa relação tão doentia quanto usual, são personagens construídas para parecerem reais, mas ao mesmo tempo funcionarem como arquétipos do masculino e do feminino, tanto das características boas, quanto das menos desejáveis. Amy é é uma sociopata, mas é tão fácil me identificar com ela que chego até a ter medo. Nick também é um sociopata, mas como homem não é difícil empatizar com suas angústias e seu desespero. As duas personagens são incríveis, mas Amazing Amy é de longe a que merece um lugar na minha memória eternamente. Se não por mais nada, pelo seu monólogo no início do segundo ato do livro e suas reflexões sobre a "garota legal (cool)".

Falando em segundo ato, vale mencionar que a estrutura narrativa e o formato da história são outros atrativos do livro. Alterna entre a narração em primeira pessoa por parte de Nick, conforme os eventos se desenrolam após o desaparecimento, e a exposição do diário de Amy que desvenda a vida anterior do casal na forma de flashbacksAmy em seu diário desenvolve o relacionamento dos dois desde o momento em que se conheceram e sua visão é contraposta às lembranças e reminiscências de Nick nos dias atuais, formando um painel de expectativas e desilusões antagônicas e tristemente familiares.

Infelizmente, para leitores e expectadores de mistérios e thrillers, uma das revelações principais acaba não causando o espanto que deveria, mas os pequenos ganchos de cada um dos curtos capítulos mantêm um ritmo fluido e o interesse não diminui (terminei o livro em praticamente uma sentada). É necessário também que se suspenda a descrença em algumas passagens que forçam a mão, mas no ponto em que elas acontecem você já está tão interessado no destino de Nick e de Amy que vai deixar passar muita coisa.

Como normalmente acontece, muita gente vai deixar de ler esse livro e conhecer a história apenas pelo ótimo filme do diretor David Fincher. Infelizmente o papel tem muito mais a oferecer do que o que é mostrado nas mais de duas horas de tela. Amy e Nick são muito complexos e há muito mais a se absorver deles do que simplesmente ouvir e ver a sua história.

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