segunda-feira, 30 de julho de 2007

Coisas frágeis - Neil Gaiman

O problema de Gaiman


Coisas frágeis / Fragile things é um compêndio de várias histórias de Neil Gaiman escritas ao longo de anos, para diferentes fins e em diversos contextos. No Brasil, essa seleção foi lançada em dois volumes e, como li o original, não sei exatamente quais dos contos, poemas ou pequenas novelas ficaram em cada um deles, então, de certa forma, estou avaliando ambos aqui.

É impressionante notar o quanto a grande maioria das histórias, para não dizer todas, tem a marca "Gaiman" transbordando do início ao fim. Como geralmente acontece, esse tipo de comentário costuma ser o principal atrativo e a maior detração para qualquer tipo de obra cultural. Para os leitores mais antigos, isso pode ser tanto um alento - encontrar exatamente aquilo que se está esperando, quanto uma frustração - encontrar apenas um caça-níquel composto do que parecem ter sido rascunhos de outras obras ou uma reciclagem de material já utilizado. 

Uma história bastante representativa dos cacoetes de Gaiman e dos argumentos do parágrafo anterior é certamente A vez de outubro / October in the chair. Nela são evidentes três dos principais artifícios que você vai encontrar na maioria dos livros e contos do autor:

1) Personificação de conceitos: aqui os meses do ano são personagens que se reúnem para contar histórias relacionadas a si mesmos. Em Sandman temos os Perpétuos (Sonho, desejo, morte etc.), em Deuses Americanos / American Gods temos novos e antigos deuses e por aí vai. Ess é um recurso do tipo "em que time que está ganhando não se mexe" de Gaiman. Pegue um elemento literário ou da cultura já bem estabelecido e utilize em um narrativa moderna ou com um olhar completamente diferente do contexto original. Ele não é o único autor a lançar mão desse recurso (J.K.Rowling fez bilhões dessa maneira), mas certamente é um que abusa dele.

2) Crianças convivendo com o extraordinário ordinariamente: Coraline, os garotinhos fantasmas em Sandman, Ninguém/Nobody Owens em The Graveyard Book e outros personagens do tipo aparecem constantemente em seus trabalhos. A inocência de crianças vivendo situações que seriam aterradoras para os adultos é um contraste sempre interessante, mas cansativo quando usado à exaustão.

3) Coitus interruptus: a história abre, elementos extraordinários vão sendo adicionados, algumas pistas são jogadas e, por fim, a ela é interrompida antes que uma conclusão satisfatória seja alcançada. Em Coisas frágeis / Fragile things, esse cacoete alcança níveis irritantes, e na grande maioria das histórias, é impossível distingui-lo de simples "preguiça" ou de inaptidão - Pó amargo / Bitter grounds, Como falar com garotas em festas / How to talk to girls at parties e muitas outras sofrem desse problema.

Não me entendam mal, continuo preferindo Gaiman a muitos outros autores mais "sérios", mas a "genialidade" que via nele na adolescência desapareceu completamente em um nível que já não sei dizer se um dia esteve mesmo lá. O autor fez sucesso com um estilo e manteve-o para o resto da vida sem arriscar. 

O próprio Gaiman em várias histórias anteriores e em algumas nesse livro levanta o poder das histórias e como elas parecem sempre ter estado lá, apenas mudando de aspecto e se adaptando a novos tempos e situações como se houvesse somente um número limitado de histórias "em estado bruto". 

Sobre a seleção em si de histórias de Coisas Frágeis, destaco algumas das melhores: 

Um estudo em esmeralda/ A study in Emerald que mistura Sherlock Holmes e o universo de H.P. Lovecraft em um conto muito bem escrito que respeita os estilos de ambos os autores homenageados e ao mesmo tempo cria algo único a partir dessa fusão. 

O problema de Susan / The problem of Susan é uma releitura do final de As Crônicas de Nárnia, um livro que abandonei já nas primeiras páginas e cujo final (aqui explicitado) só deu argumentos a favor dessa decisão. Mesmo sem ter lido, fico feliz com a "versão de Susan" proposta por Gaiman que deve ter deixado felizes todas as pessoas sensatas que devem ter achado um absurdo a escolha de C.S. Lewis para o destino de sua personagem.

Para quem leu Deuses Americanos/American Gods, O monarca de Glen/The monarch of Glen é uma estória deliciosa (mas, como sempre, derivativa) protagonizada por Shadow, o personagem principal do livro, e que se passa dois anos após os eventos finais. Ela conta ainda com a participação de Mr. Alice e Mr. Smith que são os protagonistas de outro ótimo conto do livro Lembranças e tesouros / Keepsakes and treasuries. 

Neil Gaiman é sinônimo de texto enxuto, rápido, sem grandes arroubos narrativos, derivado de ideias e personagens clássicos com uma pitada de elementos góticos e sombrios. Coisas frágeis / Fragile things é um ótimo ponto de partida para a obra desse autor porque contém todos os artifícios que o caracterizam e pelo mesmo motivo é mais do mesmo para os veteranos... mas mais do mesmo de algo bom geralmente não é demais.

Outras resenhas de livros do Crítica em Série:

As aventuras de Pi
A volta do parafuso

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